Foram encontrados 62 registros para a palavra: José Gonçalves do Nascimento

Espaço do Leitor: Conto de quarentena

Em frente à pequena banca, a única do bairro, Jônatas lia as capas dos principais jornais daquela manhã de segunda-feira. Uma das manchetes dava conta de que seu time do coração – após longos meses de jejum – vencera de goleada a partida do dia anterior, garantindo participação no campeonato estadual.

Logo abaixo da chamada uma foto grande e colorida mostrava um jogador do time vitorioso correndo freneticamente atrás da bola. "Caramba, até que enfim!", pensou Jônatas. Aquela vitória importava muito para ele, torcedor fanático que há muito não via o time da sua paixão ganhar uma partida. Agora sim, sentia-se de alma lavada!..

Espaço do Leitor: Pequeno conto para ser lido daqui a algum tempo

Ainda um tanto espantadas – como se houvessem despertado de um longo pesadelo – as pessoas não sabiam se acreditavam ou não no que estava acontecendo.

Já nos primeiros momentos, uma mensagem de Twitter – veiculada pelo iluminado guru – tentava minimizar a situação, afirmando que tudo não passava de mais uma conspiração com o objetivo de derrubar Sua Excelência, o PR...

Artigo - De lesma, lagarta e outras cositas: o novo livro de Edvan Cajuhy

"Tempo, Crônicas e Contos" é mais uma comprovação da versatilidade do acadêmico bonfinense Edvan Cajuhy. Ele, que já escreveu de quase um tudo, inclusive na língua de Cervantes, agora se aventura na seara do conto e da crônica revelando, também aí, o alcance do seu talento.

"Dê-me uma alavanca e um ponto de apoio e levantarei o mundo", disse Arquimedes. "Dê-me caneta e papel, ou melhor, um laptop e uma taça de vinho, que construirei castelos de sonhos", diria nosso Edvan.

O artista é o operário da ilusão e do assombro, e seu mundo é o mundo do ilimitado e do imensurável. Seu papel é propor o impossível e subverter a regra, fugindo do óbvio e do previsível. Quando tudo parece ir mal e sem remédio, eis que surge a arte como um facho de luz e um lance de esperança.

Arte é trabalho e é delírio. É bênção e maldição. É estupidez e contradição. Não dá dinheiro, não rende votos, mas salva almas e cura corações.

Pois Edvan tem feito disso sua cachaça. Melhor: uma de suas cachaças. O autor, como também este resenhista, adora uma "loira" gelada, de preferência acompanhada de bons papos e bons amigos – o que nesses tempos de "corona" é absolutamente proibido.

Há anos na lide de escrevinhador – ora como um Dom Quixote, ora como um João Batista – o autor tem apostado tudo na literatura.

Talvez por acreditar no novo mundo e no novo homem que só a poesia é capaz de engendrar.

É verdade que a república da Bruzundanga nunca foi afeita à arte. Mas o artista foi feito pra teimar, e Edvan é dessa estirpe.

Aí está "Tempo, Crônicas e Contos" – espécie de diário de bordo povoado de um montão de coisa boa. Ou, como diria Helio Freitas, um caçuá de bugigangas, onde o autor foi colocando tudo que é do seu agrado.

Por aí desfilam pessoas, coisas, viagens e fantasias. O autor não só é amigo das letras, como um amante inveterado do mundo. Viaja sempre que lhe dá na telha. E essas viagens têm lhe rendido histórias pra lá de fabulosas, como algumas enfeixadas neste livro.

Saúdo a poesia e saúdo Edvan Cajuhy, felicitando-o por seu gosto e compromisso para com a literatura brasileira.

José Gonçalves do Nascimento..

Artigo - A morte das estátuas

Os protestos antirracistas que ora se propalam mundo afora, como resposta ao assassinato de George Floyd, trazem pro debate a questão dos monumentos históricos, com todas as suas contradições.

Na esteira desses acontecimentos, um bocado de monumentos públicos relacionados a figurões da escravidão tem sido deitado por terra. Alguns chamarão isso de vandalismo, atentado ao patrimônio público, algo a ser punido nos rigores da lei...

Artigo - O Covid e o papel do estado

Tenho dúvidas – e até acho improvável – que o coronavírus vá provocar uma guinada na vida das pessoas, transformando positivamente de um momento para o outro seus costumes, comportamentos, modo de agir, e os cambaus. As coisas não são tão simples como às vezes podem parecer, sobretudo quando se trata do comportamento humano. E nem é preciso ser psicólogo para saber disso.

Pelo menos até onde se sabe, não foi isso que ocorreu quando de outras crises pandêmicas havidas ao longo da história - tirante, é óbvio, uma possível e natural euforia resultante da sensação de alívio que alguns abençoados tenham tido – uma vez passado o susto...

Artigo - Covid e com-vida: o valor do isolamento

Por que existe o mal? Esta questão acompanha a humanidade desde que o mundo é mundo.

A pergunta é assunto para os doutores da Teodiceia e da Teologia, para os quais o mal é parte do percurso humano rumo à perfeição – estando portanto inserido no plano da Salvação eterna...

Artigo - DEPOIS DO CORONAVÍRUS (do valor do recolhimento)

Por que existe o mal? Esta questão acompanha a humanidade desde que o mundo é mundo. A pergunta é assunto para os doutores da Teodiceia e da Teologia, para os quais o mal é parte do percurso humano rumo à perfeição – estando portanto inserido no plano da Salvação eterna.

O iluminista Voltaire encarou a questão de forma um tanto cômica e divertida. No romance filosófico “Cândido”, o personagem Pangloss – após uma série de fracassos e contratempos – dirige-se ao protagonista da trama (Cândido) nos seguintes termos: “Todos os acontecimentos estão encadeados no melhor dos mundos possíveis; pois afinal, se não tivesse sido expulso de um lindo castelo com uma saraivada de pontapés no traseiro por amor a Cunegundes, se não tivesse sido perseguido pela Inquisição, se não tivesse perdido todos os carneiros do bom país de Eldorado, não estaria aqui comendo cidras cristalizadas e pistaches"...

Artigo - Depois do Coronavírus

Ruas desertas, negócios paralisados, aulas suspensas, igrejas de portas fechadas, espetáculos cancelados, famílias confinadas, autoridades em polvorosa, projetos interrompidos, interesses prejudicados ...

A humanidade toda parece tremer diante da pandemia do coronavírus, que ora infesta os quatro cantos do planeta, levando o pânico e a dor.  O inimigo – invisível, mas real – agiganta-se a todo o momento, ganhando formas mais e mais assustadoras, capazes de colocar o mundo inteiro de joelhos...

ARTIGO - O BAILE FUNK E A LICENÇA PARA MATAR

A barbárie de Paraisópolis nada mais é do que resultado do ódio de classe cultivado pela burguesia brasileira, cuja mentalidade é ainda aquela do antigo senhor de escravos, a quem era dado, entre outras coisas, a prerrogativa de decidir sobre a vida e sobre a morte.

O atual burguês encara a favela com a mesma sensação com que o senhor de engenho encarava a antiga senzala. Ou seja, como propriedade sua, sujeita à exploração, ao constrangimento, e, se preciso, à eliminação física. Os lundus das senzalas de então podem ser os bailes funk das quebradas de hoje. De contrapartida, o chicote e o pelourinho de outrora podem ser o camburão e o fuzil desses dias em que vivemos.  ..

Espaço do leitor: PARAISÓPOLIS É O BRASIL

PARAISÓPOLIS É O BRASIL

Na cidade que é a mais capitalista das cidades,
A favela mais populosa da cidade
Fica ao lado do bairro mais rico da cidade...

OPINIÃO: MARX E A DULCE DOS POBRES

Não há na história humana qualquer fato, qualquer acontecimento, seja de que ordem for, que possa ser “quimicamente puro”, no  sentido de inquestionável, imune a qualquer ressalva, acima do bem ou do mal,  ou coisa que o valha. A história nunca é feita da forma como idealizado, nem entre os santos, mesmo porque os santos, como todos os outros humanos, são filhos e frutos da história.

É comum acharmos que este ou aquele acontecimento deveria ter sido assim ou assado e não da forma como se apresenta (ou foi apresentado); que determinado personagem errou porque não disse ou não fez aquilo que nós reputamos como sendo o correto, mesmo que às vezes estejamos a mil anos luz desse personagem...

Miscelâneas

UM POUCO DE MIM

Nasci em Monte Santo, no Marruás. Fui aluno do Instituto de Educação Monte Santo, escola da qual guardo as melhores referências. No auge de minha juventude, resolvi ser padre e ingressei no Seminário. Num período de 12 anos, passei por seis seminários em lugares diferentes, sendo o último em Roma, na Itália, onde concluí o curso de Teologia e me habilitei para o ministério sacerdotal. Ordenei-me em Monte Santo, no ano 2000, e depois de atuar, por cerca de três anos, em algumas paróquias da minha diocese, Bonfim, decidi renunciar, passando a militar em outras searas. As andanças, todavia, não pararam e eis que hoje me encontro aqui nessa Pauliceia Desvairada, longe do sertão árido do Nordeste, mas perto de um outro sertão, não menos árido: o sertão de cimento, cal e concreto...

ARTIGO - ARLINDO LEONE E SERGIO MORO: AGENTES DE DESTRUIÇÃO

Foi um juiz, Arlindo Leone, que, atendendo aos interesses das elites opressoras, desencadeou a guerra que destruiu Canudos e sua gente. Foi um juiz, Sergio Moro, que, atendendo aos interesses das mesmas elites opressoras, desencadeou o processo que está levando o Brasil à morte e à destruição.

Senão, vejamos:

Arlindo Leone era juiz de direito da comarca de Bom Conselho (atual Cícero Dantas), quando uma manifestação, envolvendo seguidores de Antônio Conselheiro, incinerou em praça pública os editais em que o município fixava os impostos a serem cobrados da população. (Era o início da república, e os municípios acabavam de obter o direito de estipular e realizar a cobrança de tributos).

O juiz tomou aquele episódio como uma afronta à sua autoridade e, a partir de então, não parou de alimentar e insuflar ódio contra a figura do Conselheiro. Só aguardava o momento de dar o bote e colocar as mãos no líder de Canudos.

E esse momento chegou. Foi em 1896. Conselheiro havia negociado em Juazeiro a compra de certa quantidade de madeira a ser utilizada no arremate de uma nova igreja. Comprado e pago, o material não foi entregue no prazo acordado. Frente à demora, os moradores de Canudos decidem ir, eles mesmos, até a cidade san-franciscana, a fim de apanhar a importante encomenda.

Sabendo disso, e achando a ocasião propícia para acertar contas com o Conselheiro, Arlindo Leone, àquela altura lotado na comarca de Juazeiro, manda um ofício ao governador informando do suposto saque, e ao mesmo tempo, solicitando providências. O governador atende o magistrado e despacha para o sertão uma tropa de cem policiais, que acaba destroçada pelos canudenses, no célebre combate do Uauá. Tinha início a guerra de Canudos. E essa história, todos a conhecem. O ódio das elites tradicionais, somado ao ódio de um juiz de direito, porta-voz dessas mesmas elites, transformava o sertão num mar de sangue e ceifava a vida de milhares de brasileiros.

Pois bem. É óbvio que a história não se repete. Mas pelo menos num particular ela tem sua continuidade. E este particular é a forma desprezível, odiosa e violenta com que as elites tradicionais trataram e continuam tratando os pobres desse país.

Porta-voz, capacho e serviçal dos interesses da burguesia brasileira e norte-americana, Sergio Moro – mutatis mutandis – reproduz Arlindo Leone.

Tudo começa quando ele, Sergio Moro, surfando na onda neofascista e subvertendo o Estado Democrático de Direito, prende sem provas o líder político mais importante da história, apenas para impedi-lo de participar de um processo eleitoral em que se mostrava favorito.

E, assim fazendo, abre margem para a eleição de um projeto perverso de poder, cujo mote é a negação de tudo que se construiu até agora no campo dos direitos sociais, como temos notado numa série de “reformas” e medidas ultimamente adotadas por esse governo.

Mas não só: sem quaisquer escrúpulos, e como que a completar a trama mesquinha, Moro ainda integrará o governo que ele mesmo, de forma arbitrária, ilegal e corrupta, ajudou a eleger.

Completada a obra perversa que se maquinou no mundo sombrio da Lava Jato, em conluio com os promotores estelionatários de Curitiba, Moro mudou de posto, mas não mudou de lado. Junto com Bolsonaro, e junto com o que há de pior no mundo da política, dos negócios e da justiça, o ex-juiz continua fazendo o que sempre fez: bajulando o “império”, disseminando ódio e perseguindo os pobres.

Sim, Moro está fazendo o que sempre fez e mais um pouco: junto com Bolsonaro e demais membros do atual governo, está destruindo o Brasil e o conceito do Brasil, aqui e lá fora.

Arlindo Leone e Sergio Moro são elos da mesma corrente que, por séculos sucessivos, sujeitou os pobres e os atrelou aos caprichos das elites escravocratas, opressoras e parasitárias...

ARTIGO - A JUSTIÇA TARDA, MAS NÃO FALHA (o Caso Dreyfus, Lula e a “Vaza Jato”)

Os recentes acontecimentos revelam que a prisão do ex-presidente Lula já se insere no índice dos grandes erros da história, podendo mesmo equiparar-se a episódios clássicos da trama judicial, como o "Caso Dreyfus", denunciado por Émile Zola, no célebre manifesto "J'Accuse".

Foi assim: no final do século XIX, um oficial do exército francês, de nome Alfred Dreyfus, foi acusado, julgado e condenado à prisão perpétua pelo crime de alta traição. Banido do exército, foi humilhado e degradado em praça pública. Algum tempo depois, descobriu-se que tudo não passava de uma farsa. Dreyfus, na verdade, havia sido vítima de perseguição, por conta da sua condição de judeu. Acabou inocentado e reabilitado. A exemplo de Zola, também Ruy Barbosa tomou parte na questão, redigindo um longo manifesto em defesa do oficial.

Algo similar tem ocorrido no Brasil dos nossos dias. Vítima do ódio de classe e do jogo político desonesto, um ex-presidente da república – o estadista brasileiro mais bem avaliado da história – é alvo de um processo injusto, arbitrário e desumano.

As circunstâncias em que surgiu tal processo, e agora as revelações da “Vaza Jato”, não deixam dúvidas quanto à farsa que se lavrou com a finalidade de justificar o encarceramento de Lula.

No papel de porta-vozes da extrema-direita, Sérgio Moro e seus asseclas trabalharam política e ideologicamente para tirar o ex-presidente do páreo, e assim, com mais facilidade, angariarem o poder. 

Como não dispunham de votos, os neofascistas, de forma vil, valeram-se da força do arbítrio para minar e tirar do caminho o concorrente que, naquele momento, mais chance tinha de vencer as eleições. E que, não por coincidência, era (e é) o mais odiado pela elite parasitária do país. 

Não deu outra. A fraude venceu o Direito e alçou ao topo do poder o que existe de pior e de mais imundo na política brasileira. E o resultado está aí: um projeto de poder sedimentado na incompetência, no ódio, no ressentimento, no autoritarismo, no obscurantismo, no desprezo aos pobres, no ataque à soberania nacional, na agressão ao meio ambiente, na destruição de conquistas sociais. 

A justiça tarda, mas não falha. Quando se desfizer por completo a farsa que desde o início se forjou, o ex-presidente Lula se imporá maior do que nunca, enquanto Moro, Dallagnol, Bolsonaro, et caterva sucumbirão no lixo da insignificância, engrossando o rol dos indivíduos mais infames da história...

O RÁDIO DO MEU PAI (Crônica)

Em nossa casa o rádio era quase que um membro da família. E tínhamos para com ele uma relação quase que de amor. Longe de ser apenas um aparelho receptor de ondas magnéticas, um item do mobiliário, ou coisa equivalente, o rádio era o símbolo do encanto, da poesia, do arrebatamento. O rádio nos falou da vida. Nos aproximou do mundo. Nos instigou a sonhar. 

(Mais do que uma caixa de som, o rádio era uma caixa de sonhos)...

Artigo - A cama de Procusto e a reforma da previdência

Na mitologia grega, Procusto era um perigoso salteador que costumava atrair viajantes para sua residência. Chegando ali, as vítimas eram deitadas numa cama de ferro, e depois que adormeciam tinham seus corpos moldados e ajustados de acordo com o tamanho do leito. Se fossem maiores, eram cortados a machado; se fossem menores, eram estirados com cordas até atingir a medida exata da cama.

É assim que têm avançado as políticas econômicas do pós-golpe. O que elas pretendem nada mais é do que moldar ou adequar as condições do povo às exigências do Estado (e do Mercado), quando deveria ser o oposto: eles é que têm de adequar-se às necessidades e bem-estar dos cidadãos e cidadãs – razão última de toda e qualquer política...

ARTIGO - A SAGA DE SHAIRA

A escravidão no Brasil durou cerca de 350 anos e arregimentou milhões de negros trazidos do continente africano. Só foi extinta quando não mais atendia aos interesses da burguesia europeia, em especial a inglesa, que, com o advento da industrialização, passou a cobrar o fim do trabalho servil. 

O longo período de escravidão, seguido de uma abolição de araque (já que incompleta), mergulhou o país no obscurantismo, e deu lugar a uma herança maldita, cujos efeitos ainda se fazem sentir. A cultura escravagista, que reinou por mais de três séculos, não foi de todo abolida, e é ainda reverenciada por amplos setores da elite brasileira que insiste em dar as cartas, ciosa das benesses da casa-grande e saudosa do tempo em que moía negro no tronco.

O romance  Shaira e a Saudade, de Sarah Correia, a ser lançado ainda este mês, se insere nesse contexto da história do Brasil. Como o zoom de uma fotografia, a autora põe em destaque o drama da menina Shaira, que, arrebatada do seio materno, na grande e longínqua África, é trazida para o Brasil a fim de servir como escrava.

O enredo tem como cenário principal uma fazenda do sertão do nordeste e se desenrola, basicamente, entre a senzala e a casa-grande, espaços onde, paradoxalmente, a personagem central vive os horrores da escravidão e, ao mesmo tempo, a experiência da liberdade. 

Ricamente fundamentada, a narrativa mergulha no vastíssimo universo da cultura africana, interagindo com as diversas representações simbólicas, responsáveis por conferir significado à vida, e tudo que a envolve. Acertadamente, o texto destaca o papel da memória enquanto elemento constitutivo do processo de afirmação e consolidação das identidades individuais e coletivas, condição sine qua non – diríamos – para a efetivação das experiências de liberdade, autonomia e empoderamento. 

É a memória, presente no cheiro da mãe, e atualizada nas imagens dos rios, das florestas, das montanhas, que faz com que a pequena Shaira esteja permanentemente conectada às suas origens, étnicas e familiares, e sonhe com a possibilidade de um dia poder reencontrar os seus. 

Ao contar a saga de Shaira, a autora montessantense, efetivamente, acaba por contar também a história do Brasil. Não a história oficial: a história dos senhores, dos opressores, dos vencedores; mas a história real: a história dos humildes, dos excluídos, dos vencidos. Aliás, dentre os muitos méritos que a trama apresenta, está o de trazer à baila, de forma quase que pioneira, o tema dos milhares de negros que retornaram à África, uma vez alforriados. Ignorada pela historiografia convencional, a questão é praticamente desconhecida do grande público, restringindo-se a um ou outro historiador.

Numa perspectiva – ousaríamos dizer – gramsciana (de Antônio Gramsci) Sarah Correia traz pra sua literatura as figuras do povo, dos pobres, do oprimido, tratando-os – e isto é o mais importante – não como meros coadjuvantes, mas como atentos protagonistas, com poderes de fala e de decisão. Isso faz com que a autora se aproxime de figuras do naipe de Carolina Maria de Jesus, Maria Firmina dos Reis, Luís Gama (os dois últimos citados no corpo da obra), e tantos outros intelectuais que fizeram dos humildes a sua temática literária.

Não bastasse tudo isso, Shaira e a Saudade encanta ainda pelo vigor do seu texto – leve e consistente – e pela beleza da sua poesia – doce e revolucionária.

José Gonçalves do Nascimento..

ARTIGO - MAIS FORTES SÃO OS PODERES DO POVO

Duas declarações emitidas neste início de semana chamam atenção pelo grau de sandice dos seus autores. A primeira declaração partiu do governador de São Paulo, João Doria.  Em evento com representantes do agronegócio, Doria disse não tolerar nenhum caso de ocupação por porte do MTST e do MST (ou movimentos afins), e que qualquer tentativa neste sentido será tratada como crime, e, por conseguinte, resolvida pela polícia.

A segunda declaração veio do presidente da República. Em pronunciamento, também para representantes do agronegócio, Bolsonaro informou estar em tratativa com o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, e que nos próximos dias encaminhará àquela casa um projeto de lei dispondo que fazendeiros que atirarem em trabalhadores integrantes de movimentos de ocupação de terra estarão isentos de punição judicial...

O MILAGRE DE UMA NARRATIVA (Entre prosa, cafés e veredas)

Uma dissertação de mestrado, defendida recentemente na USP pelo professor Denizart Fazio, adentra a terra ensolarada de Deus e o Diabo e reconstitui a trajetória da Efase, lançando luzes sobre a reflexão filosófica no campo da educação.

Para o trabalho de campo, o autor da narrativa esteve por diversas vezes no sertão, onde, sob a “sombra do umbuzeiro”, ou “entre cafés” e “encontros acolhedores”, conversou com contadores de estórias, com agricultores familiares, estudantes, professores e com lideranças sociais...

O IRMÃO ANTÔNIO (Conto)

A cidade ainda dormia. Melhor: poderia está ainda dormindo, não fosse o menino da matraca que desde o miudar do galo intimava os crentes para a oração matutina que começaria logo mais. O lombo da serra, com suas casinholas brancas, solenemente distribuídas, começava a despontar. O moço da prefeitura, de uniforme branco, chegava para apagar o último bico de luz que ainda se mantinha aceso na praça grande e deserta. No céu, uma revoada de pardais quebrava por alguns instantes a quietude do silêncio. Talvez quisessem saudar os raios do sol que logo logo começariam a romper. Não tardaria muito, e o sineteiro executaria os primeiros dobres do sino, emprestando ao ambiente a cerimônia que a ocasião exigia.

Irmão Antônio chegou ao romper do dia daquela Sexta-feira Santa. Viera de longe, os pés calejados, o corpo coberto de poeira. Parou em frente à matriz, que ainda se mantinha fechada, ajoelhou-se, fez o sinal da cruz e rezou. Em seguida, olhar fixo, sereno, compenetrado, surrão sobre as costas, dirigiu-se ao Tangue da Nação, apeou, e montou acampamento. Bebeu água numa cuia, comeu o último pão que lhe restara da viagem, e descansou. Precisava recobrar sustança, física e espiritual, para a jornada que prometia ser muito intensa. Viera para pregar...